terça-feira, 28 de abril de 2015

Biblioteca Pública do Paraná: A casa dos livros e dos imortais


Entre os milhares de livros e documentos do principal acervo literário do Paraná, a história e conhecimento também estão em quem frequenta o local

Por Natalia Bruckner

Um pedestal no centro da cidade, ao qual se chega por meio de uma escada ou duas rampas de mármore, onde frágeis e tortos deuses na terceira idade esperam, fumam ou simplesmente vislumbram a insignificância dos transeuntes, todos abaixo deles, andando depressa pela Cândido Lopes e carregando sacolinhas da Americanas. Os concierges do Hotel Bourbon, mortais. Subo depressa ao panteão e sou a mais jovem na ágora dos deuses velhinhos. Um deles fuma um cigarro quase no fim. Insiste em fumar a bituca. Seria ele Hefestos, encarnado numa figura idosa, semi-careca, torta e grande, de terno azul marinho desgastado tentando assoprar o fogo, referência de seu poder, num resto de cigarro amassado e inerte? O deus que tentava sem sucesso dar seu sopro de brasa ao resto do cigarro olhou para mim com seus olhos pesados e sua boca se mexeu sem soltar nenhum som. Jogou a bituca na escadaria de mármore que separava os velhos deuses dos inferiores mortais apressados e suas sacolinhas da Americanas, e entrou. Hefestos claudicava.

Do pedestal, a morada para onde as divindades se dirigem apoiadas em suas bengalas, ou os que ainda podem mancar sem o apoio delas, é um prédio modernista com mais de 8,5 mil metros quadrados, três andares mais um subsolo, inaugurado em 1954 por Bento Munhoz da Rocha Neto para ser a sede definitiva da Biblioteca Pública do Paraná. Mais de 304 mil títulos entre livros, jornais, materiais musicais e de vídeo, gibis, artigos, teses e registros históricos empilhados pelos andares do prédio. Destes títulos estão disponíveis mais de 683 mil exemplares em 13 sessões, tais como “Filosofia e Sociologia”, “Imprensa Paranaense”, “História, “Religião”, “Multimeios” e “Braile”. A sessão do braile é uma pequena salinha que fica no terceiro andar do prédio, com sinalização tátil na maçaneta e na plaquinha da porta estreita de madeira escura. Quem precisar usar a sala precisa solicitar um atendente. Ela fica o tempo todo trancada. De acordo com o levantamento do ano passado, a Biblioteca Pública do Paraná atende cerca de 3 mil usuários por dia, oito mil usuários inscritos por ano, realiza em média dois mil empréstimos de material e barra em média duas tentativas de roubo por dia. 


“Todo dia entra gente incomodando aqui. Incomodar os estudantes, fazer sujeira no banheiro. Traia mesmo”

Antônio de Souza é segurança da Biblioteca há três anos e conta com a expressão mais tranquila do mundo que tentativas de roubo e depredação acontecem todos os dias. Todos os casos são mais ou menos a mesma coisa: gente tentando roubar livro. Mas um caso que se destacou foi no ano passado, quando um garoto “que parecia ‘ser de boa’” tentou roubar cinco livros, todos escondidos sob a blusa e apoiados no cós da calça. Foi descoberto porque os livros caíram. A máxima da vergonha de “roubar sem poder carregar” foi apenas uma exceção à regra. Lá, todo dia tem gente que rouba, segundo Antônio, que com seus movimentos lentos e olhos tranquilos, faz o que dá.

Silêncio sepulcral

O ambiente do prédio é austero, esfriado pelas paredes militarmente grossas e pelo chão de granito. As pessoas que trabalham por lá, apesar de serem diferentes entre si, parecem todas r cópias de uma mesma pessoa. Os funcionários de expressão facial imutável no guarda-volumes, o rapaz da invisível recepção à direita da entrada, seu Antônio e Patrícia, sua colega do setor de segurança, todos parecem ser a mesma pessoa, multiplicadas. É como se a austeridade do ambiente vestisse uma máscara descaracterizante nos rostos destas pessoas a partir do momento em que suas carteiras de trabalho fossem assinadas para a admissão na Biblioteca. No hall silencioso do segundo andar, velhinhos leem jornais com idades semelhantes às deles ou jogam xadrez em silêncio sepulcral. Na grande sala central e fria onde a madeira muito escura dos móveis e das portas e os tons neutros de chão e das paredes predominam na cartela de cores, o suéter vermelho carmesim de um senhor que jogava xadrez, muito calvo e com o cabelo grisalho que beira o lilás destoava da neutralidade hospitalar do ambiente. O parceiro de jogo usava outro suéter que lhe dava uma habilidade impressionante de se camuflar com as paredes cor-de-areia.

As salas de leitura são mais silenciosas que os halls e exatamente umas iguais as outras, exceto pela cor das estruturas metálicas que lembram encanamentos, que percorre os cantos de cada sala. A sala de “Filosofia e Religião” tem essa estrutura pintada de verde. A da sala de “História” é vermelha e a de “Periódicos” é amarela. O único ambiente que se livra do ar sepulcral uma outra sala de xadrez que fica no térreo, em um dos cantos envidraçados do prédio, do qual se pode ser a rua. É a única sala no qual o sol bate, mas que apesar de ser o ambiente mais alegre das instalações da Biblioteca, quase ninguém fica nela, a não ser as mesas, cadeiras e tabuleiros de xadrez que tomam sol e esperam por senhores que desejam fazer fotossíntese enquanto movem peões, torres e rainhas.

Enquanto subo a escada do térreo - que lá é chamado de 1º andar – para o segundo andar, sou abordada por um homem moreno que usava um conjunto azul-marinho e vermelho um tanto desgastado. Mãos trêmulas e fala um pouco rebuscada.

“Moça...essa roupa que você tá usando. Fui eu que criei”

“Ah, é? Você desenha roupas? Para onde você desenha?”

“Tenho uma empresa chamada Confecções Brasileiras”

“Mas isso é Adidas...” – virei de frente para ele de modo que ele pudesse ver a logo da marca na minha blusa.

“Ah, tá... Confundi.” – acenamos um para o outro e fui em direção a Gibiteca.

A Gibiteca, que fica no segundo - leia-se primeiro - andar, está entre as poucas salas que se diferenciam um pouco mais das outras. É pequena, não tem os “encanamentos” e tem apenas uma enorme mesa com cadeiras no centro. Peguei um exemplar de mangá e me sentei entre os três jovens silenciosos e monossilábicos que liam títulos da Marvel quase colados aos seus rostos. Provavelmente são míopes como eu. Peguei um mangá nas mãos na tentativa de sentar entre os rapazes e me aproximar de um deles, desabituada a ler de trás para frente ao estilo japonês como essas histórias em quadrinhos são feitas.

“Gosto de passar o tempo só”. Foi a resposta de Zumbo, um rapaz de aparência polaca e frágil, quando perguntei a ele o motivo de ficar na Gibiteca por horas a fio. Os olhos azuis muito pequenos atentos a apenas passar o tempo colados nas páginas do Batman. Os lábios secos e muito finos não se interessaram em pronunciar mais palavras, nem para me responder o motivo de ele se chamar Zumbo, pois este não parece ser um nome com o qual uma pessoa é registrada ao nascer.

No mesmo pavimento fica a “Sala de Documentação Paranaense” cujo acervo é composto em sua maioria por jornais publicados desde 1854, onde usuários fazem pesquisas de época ou os vasculham para montar um quebra-cabeças da própria vida, como fazia Sílvio, um jovem moreno, franzino e de olhos úmidos que procurava os pais biológicos da mãe que fora adotada, vasculhando edições antigas da “Tribuna do Paraná” na tentativa de achar os lares de adoção que existiam em Curitiba nos anos 70, para ver em qual deles sua mãe foi suspostamente deixada. Para ler os jornais, há uma máquina leitora de microfilme. Os jornais são convertidos em filme no Rio de Janeiro, onde fica a matriz das publicações, e na biblioteca são numerados e arquivados de acordo com o ano, mês, dia e veículo de imprensa.

“Bonito, corajoso, sexi (com “i”)”. Assim Fernando Collor era descrito em uma publicação do dia 02 de fevereiro de 1987 do jornal Folha de Londrina que noticiava sua visita ao estado de São Paulo, destacando que ”ele tem conseguido boa receptividade em suas aparições até mesmo porque tem sempre diante dele uma obediente câmera da Rede Globo”. Girando o grande botão da máquina de microfilme e procurando por mais manchetes, parei na página de horóscopo o que aquele dia, no qual eu não era nem nascida, reservava para o meu signo. “Libra: Muita expectativa em relação a alguns planos colocados em prática recentemente. Superação dos problemas, sorte nos jogos e sorteios. Aposte nos números 33,18, 67, 50, 02 e 00. Classificação dos times: 1º - Atlético, 2º - Maringá, 3º - Colorado. “Vestibular da Onioeste termina hoje”, “Paralisação de trens ameaça abastecimento de combustível no Paraná”.

O poeta das ruas

Além dos milhares de materiais arquivados, a história mais rica da Biblioteca do Paraná é ambulante, entra e sai dela todos os dias, e onde a máxima de que “de todo poeta e louco todos têm um pouco” não vale. Ou se é muito poeta, ou muito louco. Ou muito dos dois. Nada de pouco. Como é o caso de Paulo “Poeta das Ruas”, um senhor baixinho, de voz metálica e de temperamento acessível que foi sargento da Polícia Militar e comandante de policiamento da Biblioteca Pública há mais de 40 anos e que vem todos os dias até “a sua casa” para externar a sua poetite aguda, transtorno de saúde que o faz escrever cerca de 35 poemas apenas em uma tarde, rodeado por livros e provocando pessoas e lhe darem temas para fazer poesias sobre qualquer coisa. Já foi vereador, professor, leu mais de cinco mil livros, dos quais anota os títulos, um por um num caderninho de aparência juvenil. Seu saldo, aos 74 anos, é de muito conhecimento, mais dois mil livros que faltam serem lidos, quatro pontes de safena, cinco stents, complicações na coluna e nos rins, e nenhum arrependimento na vida. ”Eu sou feliz, tenho quatro filhos, venho aqui todos os dias e se você me der um tema agora eu te escrevo um poema e te mando por email, menina”. 

Eu tinha que escolher o tema. Olhei para o entorno da sala e não achei ideia, foi quando olhei para as minhas mãos e decidi que Paulo escreveria sobre o esmalte vermelho descascado nas minhas unhas. Eis que a conversa mansa entre eu e o poeta é cortada por uma voz muito grave e muito rouca. Era o Hefestos que vi tentando assoprar o fogo da vida em sua bituca de cigarro no pedestal da entrada. Falava sozinho enquanto claudicava da sala de Filosofia até a sala de História. Falava com a fluidez de uma conversa entre duas pessoas, mas estava completamente sozinho. Esse Hefestos que falava só é Antônio, que tem a mesma idade do poeta com quem eu conversava e que frequenta a Biblioteca desde os 19 anos. Não se sabe como passou a falar sozinho, porém ele é visto no prédio todos os dias, onde sempre faz a mesma coisa: entra conversando consigo mesmo ou com quem somente ele vê, lê em voz alta e faz anotações num caderninho enquanto continua falando, alheio a tudo e todos na sala. Peguei um livro com fotos da Europa Medieval como pretexto para sentar-me ao lado dele e tentar puxar um assunto, mas ele não falou comigo. Me olhou vagamente e continuou falando, mas essas falas não eram para mim. Saí da sala e fui beber água. Me lembrei da sujeira que o guarda diz que às vezes se fazem nos banheiros e deixei a água para outra hora e lugar.

Pego minha bolsa no guarda volume, olhando os dois funcionários diferentes entre si, mas que parecem igualados pela atmosfera e procuro urgente meus óculos de sol. Saio com a mão na frente do rosto como um recém liberto de uma cela solitária que não vê a luz amarelada do sol há anos. Deixo o prédio, descendo os três degraus de mármore que separa o pedestal dos deuses idosos da humilde mortalidade dos pedestres na rua, dos conciérges do Bourbon. Antônio-Hefestos surge em déja-vu, exatamente da mesma maneira frágil e desajeitada que o vi quando entrei, só que com os olhos direcionados para a bituca de cigarro que ele insistia em acender, sem sucesso. Outra bituca que caiu amorfa no chão depois do fracasso do deus do fogo. Fui colocar crédito para celular na Americanas. Ainda espero o que Paulo tem a dizer sobre o vermelho descascado das minhas unhas.

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